E Também Aqueles Dias


Agora no mês de junho fez um ano da morte do português José Saramago, conhecido mundialmente por obras como 'Ensaio sobre a Cegueira', 'As Intermitências da Morte' ou 'O Evangelho Segundo Jesus Cristo'.

Ele tornou-se um dos meus escritores preferidos, marcante principalmente por seu sarcasmo delicioso de ler.

No início desse ano li um livro chamado 'A Bagagem do Viajante', uma seleção de crônicas de diversos temas e eu escolhi compartilhar uma dessas crônicas com voces. Não coloquei o texto na íntegra porque ele é meio extenso e acabaria ficando meio enfadonho, mas foi o que achei mais interessante para por aqui agora.

E TAMBÉM AQUELES DIAS

E houve também aqueles dois gloriosos dias em que fui ajuda de pastor, e a noite de permeio, tão gloriosa como os dias. Perdoe-se a quem nasceu no campo, e dele foi levado cedo, esta insistente chamada que vem de longe e traz no seu silencioso apelo uma aura, uma coroa de sons, de luzes, de cheiros miraculosamente conservados intactos. O mito do paraíso perdido é o da infância – não há outro. O mais são realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcançável. E sem elas não sei o que faríamos hoje. Eu não o sei.

Meus avós tinham decidido, porque a venda dos bácoros havia sido fraca, que o resto das ninhadas seria vendido na feira de Santarém, por melhor preço e sem mais gasto de dinheiro. Porque o caminho seria andado a pé, quatro léguas de campo, a passo de porco pequeno, para que os animais chegassem à feira com sorte de comprador. Perguntaram-me se eu queria ir de ajuda com o tio mais novo – e eu disse que sim, nem que fosse de rastos. Ensebei as botas para a caminhada e escolhi no alpendre o pau que mais jeito dava aos meus doze anos esgalgados. Sempre foram caladas as minha alegrias, e por isso não soltei os gritos que me estavam no peito, que até hoje não pude deixar sair.

(...)

Acordei quando meu tio me chamou, madrugada alta. Sentei-me na manjedoura e olhei para a porta, com os olhos piscos de sono e deslumbrados por uma luz inesperada. Saltei para o chão e vim ao pátio: na minha frente estava uma lua redonda e enorme, branca, entornando leite sobre a noite e a paisagem. Era tudo branco refulgente onde a lua dava e negro espesso nas sombras. E eu que só tinha doze anos, como já ficou dito, adivinhei que nunca mais veria outra lua assim. Por isso é que hoje me comovem pouco os luares: tenho um dentro de mim que nada pode vencer.

(...)

Começamos a subir para Santarém quando o sol nascia. Estivemos na feira toda a manhã e parte da tarde. Não vendemos os bácoros todos. Por isso tivemos que regressar também a pé, e foi aí que aconteceu aquilo que não tornou mais a acontecer. Por cima de nós formou-se um anel de nuvens que quase ao sol-pôr enegreceram e começaram a largar chuva, e então por muito tempo andamos sem que uma gota nos apanhasse, enquanto à nossa volta, circularmente, uma cortina de água nos fechava o horizonte. Por fim as nuvens desapareceram. A noite vinha devagar entre as oliveiras. Os animais faziam aqueles ruídos que parecem uma interminável conversa. Meu tio, à frente, assobiava devagarinho.

Por causa de tudo isso me veio uma grande vontade de chorar. Ninguém me via, e eu via o mundo todo. Foi então que jurei a mim mesmo não morrer nunca.

José Saramago

Continue >>>
 

Quase Anônima ♣ ♣ ♣ Mamanunes Templates ♣ ♣ ♣ Inspiração: Templates Ipietoon
Ilustração: Gatinhos - tubes by Jazzel (Site desativado)